(Foto: Robert Capa)
(Fotos: Robert Capa)
A morte de um miliciano
(Foto: Robert Capa)
Patricio Hidalgo estudou as sombras da fotografia de Capa para determinar a hora a que foi realizada
(Foto: Bruno Rascão)
Lurdes Cordoba e Francisco Romero ainda recordam a manhã em que rebentou a guerra em Cerro Muriano
«Se a foto não é suficientemente boa é porque não estavas suficientemente perto»
A história que conhecemos diz-nos que Robert Capa estava perto. Tão perto que captou o instante em que um soldado republicano foi atingido por fogo inimigo, nos arredores de Córdoba. Esse momento, captado pela sua Leica III (G), tornou-se na imagem-ícone da guerra civil espanhola (1936-39) e marcou o início da carreira de um dos maiores fotógrafos de guerra de todos os tempos.
Mas poderá a Morte de um Miliciano, a fotografia que o ministro da Cultura espanhol equiparou a Guernica, de Picasso, ter sido encenada? A dúvida paira sobre o trabalho de Capa, desde sempre. Contudo, só na última década se desenvolveram esforços para descobrir a verdade. O local da foto, por exemplo, só há três anos obteve o consenso dos investigadores. E a hora a que foi realizada, bem como a identidade do soldado, continuam a dividir opiniões.
Os cães dormitam no meio da estrada, aproveitando a brisa que amaina o sufoco dos 44 graus que já apertam de manhã. No centro de convívio da terceira idade joga-se dominó e ignoram-se as notícias que passam na televisão. As gentes de Cerro Muriano, uma vila andaluza com pouco mais de 700 habitantes, preferem comentar a chegada dos estrangeiros que buscam pormenores sobre a passagem de Capa por ali. «Ingleses, franceses, alemães, brasileiros. Nos últimos dois anos tem sido um corrupio», conta o arqueólogo Fernando Penco, responsável pelas escavações das termas romanas que se encontram no mesmo local onde caiu o soldado de Capa.
Tamanha procura já deu ideias aos políticos locais, que ali querem erguer um monumento, promover exposições e lançar um concurso de fotografia. «Verdadeira ou falsa, foi feita aqui», congratula-se Adela Romero Blanque, vice-presidente do Ayuntamento de Obejo, que gere os destinos de Cerro Muriano e vai promover um passeio pedestre pelos locais retratados há 70 anos. «A rota de Capa» poderá, quem sabe, atrair turistas para a deprimida região.
O percurso do fotógrafo fascina-a, mais do que nunca, desde que descobriu traços familiares na sua obra. «No ano passado, o meu tio-avô Juan Romero veio visitar-me e começou a folhear um livro. De repente, viu uma foto que o deixou branco: 'Esta é a minha mãe!' A mulher em cima de um burro, com uma criança nos braços, é a minha bisavó Josefa. E a criança era ele.» Todos os refugiados fotografados a 5 de Setembro de 1936 eram de Cerro Muriano.
Descobrir o local exacto da fotografia do «miliciano», através da análise topográfica das montanhas que surgem em fundo pode parecer complexo, mas não deixa margem para dúvidas a quem ali cresceu.
«Não há duas montanhas sobrepostas desta forma em toda a região», assegura Fernando Penco, apontando para a elevação de Cerro de los Santos, que se vê em segundo plano, atrás de Cerro de la Coja: a colina, já dentro da aldeia, onde o miliciano foi atingido.
Esse «monte da coxa» assim designado porque ali morava uma mulher que perdeu uma perna nos bombardeamentos de 1936, protegia uma casa da Guarda Civil, hoje Museu do Cobre, onde os republicanos instalaram tropas. E aí aguardava igualmente Capa com a namorada alemã (também fotógrafa), Gerda Taro, pela oportunidade de registar a primeira vitória republicana contra Franco.
Como recorda Cornell Capa, irmão mais novo de Robert, no prefácio do livro Capa: Cara a Cara, o casal tinha viajado para Espanha pela mesma razão que os voluntários de todo o mundo: lutar contra o fascismo. «As câmaras eram as suas armas.» Contudo, o momento da vitória roja não chegaria. As tropas franquistas adiantaram-se e, em supremacia, aniquilaram os insurgentes. Segundo o diário das operações do General Varela, comandante nacionalista, as movimentações começaram às cinco e meia da manhã, com as tropas dividas em três grupos. A maioria dos soldados era de Ceuta e Melilla (Marrocos), mais de 500 homens que foram tomando o terreno «com pequenos avanços». A infantaria era apoiada pela aviação, que lançava bombas incendiárias.
«Pela manhã, começámos a ouvir o murmúrio entre as gentes da aldeia: 'Vêm aí os mouros!' E logo se instalou a desordem.» Os dedos de Paco Montilla apertam com força o cabo da sua bengala. Tinha apenas 7 anos mas lembra-se de tudo como se tivesse sido ontem. «Havia uns quantos republicanos no Cerro de la Coja disparando com espingardas contra as avionetas».
A sua mulher, Lourdes Córdoba, é mais velha dois anos mas lembra menos pormenores. Tem presentes os gritos assustados das gentes e a hora a que a sua família fugiu, sem tempo para agarrar em nada: «Perto do meio-dia.» E, de forma bem vívida, recorda os camiões militares que iam parando para recolher os refugiados, que fugiam em pânico de Cerro Muriano. Também Ramón Lozano, 79 anos, confirma que o povo fugiu de manhã. «A minha irmã estava a lavar roupa no ribeiro quando apareceu um homem gritando: 'Corre para casa que começou a guerra!' Ela veio avisar-nos e logo a seguir apareceu uma avioneta a lançar bombas. Saímos com a roupa que tínhamos no corpo.» E Pedro Gallego Moreno, 73 anos, cresceu a ouvir as histórias de Juan, o marido da «coxa» Filomena. «Dizia que os mouros subiram em leque, desde manhã, pelo caminho dos Pañeros.»
O momento em que a população abandona Cerro Muriano tem especial relevância para determinar a hora da morte do «miliciano» um factor fundamental para averiguar a sua veracidade. Nas cópias dos arquivos da agência Magnum (fundada também por Capa), a numeração cronológica original indica que é exactamente anterior às da série dos refugiados. Segundo os testemunhos ouvidos pela VISÃO, só pode ter-se realizado antes do meio-dia.
Patrício Hidalgo, um tenente-coronel apaixonado pela história da guerra civil, determinou que o «disparo» de Capa aconteceu às nove e meia da manhã (hoje, uma hora a mais). «Penso que o sol a 5 de Setembro terá mais ou menos a mesma inclinação, seja em que ano for. Partindo desse princípio, a 5 de Setembro de 2004 subi ao Cerro de la Coja. Pus-me no sítio em que esteve o miliciano e estudei a projecção da minha sombra.»
O investigador comparou também a luz das outras fotos de Capa com as de Hans Namuth, um fotógrafo que chegou a Cerro Muriano no mesmo dia, mas à tarde. As primeiras imagens que tirou revelam o mesmo tipo de sombras que podem ver-se nas foto dos refugiados de Capa, caminhando junto a uma linha de comboio, nos arredores de Estación de Obejo. «Isso indica que quando Namuth estava a chegar, Capa partira há pouco», considera.
O«miliciano» foi identificado como Federico Borrell, ou «Taino», num artigo do Observer, em 1996. O jornal britânico publicou que o investigador Mário Brotons Jordá tinha seguido a pista das cartucheiras que trazia à cintura: um adereço das milícias de Alcoy. Brotons contava que fazia pesquisas para um livro sobre a guerra civil quando encontrou registos referindo que o único militar de Alcoy morto a 5 de Setembro em Cerro Muriano era «Taino». Não havia lugar para dúvidas.
O biógrafo «oficial» Richard Whelan e a família de Capa aceitaram essa versão, achando que assim acabava a controvérsia. Contudo, ficava por explicar quem era o outro homem morto no mesmo local, que Capa fotografa a seguir e publica na revista francesa Vu, a 23 de Setembro de 1936.
A teoria complicou-se quando Miguel Pascual, um investigador de Alcoy, encontrou o testemunho do soldado Enrique Borrell, ao jornal Ruta Sindical, em 1937: «[Nesse dia] às 2 da tarde fomos chamados para reforçar uma frente que estava a ser atacada pelas tropas fascistas. 'Taino' posicionou-se atrás de uma árvore, de onde ia disparando para o inimigo. Mas o fogo era muito intenso e uma das balas acertou-lhe no coração. Eram 4 da tarde.» Estes dados indicam que «Taino» terá morrido em Malagueñas, um monte vizinho de Cerro de la Coja que, com Torreárboles, era determinante para a defesa dos republicanos.
A tese de Brotons caiu definitivamente por terra quando, em 2003, o jornalista Alex Kershaw, autor de outra biografia de Capa, Sangue e Champanhe, procurou os registos da morte de «Taino». Todos os directores dos arquivos nacionais de Espanha negaram existir tal documento.
Há outros pormenores que Richard Whelan investigou ao longo dos anos, para construir a defesa de Capa. Em 2000, pediu ao chefe do Departamento de Homicídios da polícia de Memphis, nos EUA, que analisasse a imagem. O capitão Robert L. Franks disse que difi cilmente seria uma encenação. Por dois motivos: as plantas dos pés estão apoiadas no chão e a mão esquerda do soldado encontra-se semicerrada. «A contracção dos dedos contra a palma da mão indica claramente que os músculos do homem relaxaram estava morto. Numa foto encenada, a mão estaria aberta, amparando a queda.»
Para o biógrafo, a história da imagem é simples e resume-se nas linhas que a fotógrafa da revista Life, Hansel Mieth lhe escreveu, em 1982. «Um dia, muito alterado, Capa contou-me as circunstâncias em que se realizou aquela foto:
-Estávamos todos na palhaçada, não havia disparos. Eles começaram a correr pela ladeira. E eu também.
-Pediste que encenassem um ataque?
-De modo algum. Estávamos contentes... Pode ser que estivéssemos um pouco loucos, até.
-E depois?
-De repente, converteu-se em algo real. Ao princípio não ouvi o disparo.
-Onde estavas tu?
-Ali mesmo, um pouco mais abaixo, ao lado deles.»
Capa deu a entender que o episódio o atormentava e se sentia responsável pela morte daquele homem. Por isso teria tanta relutância em falar do assunto. Olhando para a sequência das fotos realizadas em Cerro Muriano, a versão faz sentido. Antes da morte do «miliciano», há uma em que onze soldados se alinham no topo da trincheira, acenando com as suas armas.
Indiferentes à controvérsia, os habitantes de Cerro Muriano estão fascinados com o interesse que o mundo subitamente dedica à sua terra, onde Capa fez algumas das 205 imagens da guerra civil espanhola doadas pelo irmão, em 1999, ao Museu Nacional Rainha Sofia, de Madrid. Ignoram talvez que o homem baptizado como André Friedman, na Hungria, e que se reinventou, ao fugir do nazismo, como um fotógrafo americano chamado Robert Capa, nasceu verdadeiramente ali, em Cerro Muriano. Um mês depois, abandonava o país desolado, lamentando as vitórias rojas que não conseguira fotografar, e chorando a morte de Gerda, vítima de um acidente de automóvel.
«Um pouco dele morreu com ela também», acredita Cornell, que revelava os filmes que o irmão lhe enviava para Paris, enquanto corria mundo. Registou cinco grandes guerras e foi o único fotógrafo a testemunhar o dia D, desembarcando com as tropas americanas na Normandia. A sua valentia não o livrou do encontro com a morte, na Indochina, em 1954. Tinha 41 anos. Pisou uma mina quando tentava chegar um pouco mais perto.
(Reportagem de Patrícia Fonseca e Bruno Rascão, publicada na revista Visão a 5 de Setembro de 2006, 70 anos depois de Robert Capa ter fotografado «A morte de um miliciano»)
(Foto: Bruno Rascão)
Pedro Moreno no Cerro de la Coxa, onde Capa fotografou os milicianos
(Foto: Bruno Rascão)
Hoje é Dia Mundial da Fotografia. E por mais imagens que veja, regresso sempre a Robert Capa. Foi um mestre. O maior fotógrafo de guerra de todos os tempos.
As três primeiras imagens aqui reproduzidas, a preto e branco, foram tiradas por ele em 1936, no início da guerra civil espanhola. As três seguintes, a cores, são de Bruno Rascão, com quem viajei até à Andaluzia, em 2006, seguindo os passos de Capa. Procurando, também, resposta para a dúvida que sempre pairou sobre a foto emblemática da guerra de Espanha: terá sido encenada?
Hoje é Dia Mundial da Fotografia. E, para celebrar o dia, só poderia eleger estas.
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Guerra Civil Espanhola
Pelos olhos de Capa
A 5 de Setembro de 1936, um fotógrafo registou a morte de um soldado e a imagem logo se tornou símbolo do conflito. Setenta anos depois, voltamos a Cerro Muriano, em busca das memórias desse dia
Pelos olhos de Capa
A 5 de Setembro de 1936, um fotógrafo registou a morte de um soldado e a imagem logo se tornou símbolo do conflito. Setenta anos depois, voltamos a Cerro Muriano, em busca das memórias desse dia
«Se a foto não é suficientemente boa é porque não estavas suficientemente perto»
Robert Capa
A história que conhecemos diz-nos que Robert Capa estava perto. Tão perto que captou o instante em que um soldado republicano foi atingido por fogo inimigo, nos arredores de Córdoba. Esse momento, captado pela sua Leica III (G), tornou-se na imagem-ícone da guerra civil espanhola (1936-39) e marcou o início da carreira de um dos maiores fotógrafos de guerra de todos os tempos.
Mas poderá a Morte de um Miliciano, a fotografia que o ministro da Cultura espanhol equiparou a Guernica, de Picasso, ter sido encenada? A dúvida paira sobre o trabalho de Capa, desde sempre. Contudo, só na última década se desenvolveram esforços para descobrir a verdade. O local da foto, por exemplo, só há três anos obteve o consenso dos investigadores. E a hora a que foi realizada, bem como a identidade do soldado, continuam a dividir opiniões.
Os cães dormitam no meio da estrada, aproveitando a brisa que amaina o sufoco dos 44 graus que já apertam de manhã. No centro de convívio da terceira idade joga-se dominó e ignoram-se as notícias que passam na televisão. As gentes de Cerro Muriano, uma vila andaluza com pouco mais de 700 habitantes, preferem comentar a chegada dos estrangeiros que buscam pormenores sobre a passagem de Capa por ali. «Ingleses, franceses, alemães, brasileiros. Nos últimos dois anos tem sido um corrupio», conta o arqueólogo Fernando Penco, responsável pelas escavações das termas romanas que se encontram no mesmo local onde caiu o soldado de Capa.
Tamanha procura já deu ideias aos políticos locais, que ali querem erguer um monumento, promover exposições e lançar um concurso de fotografia. «Verdadeira ou falsa, foi feita aqui», congratula-se Adela Romero Blanque, vice-presidente do Ayuntamento de Obejo, que gere os destinos de Cerro Muriano e vai promover um passeio pedestre pelos locais retratados há 70 anos. «A rota de Capa» poderá, quem sabe, atrair turistas para a deprimida região.
O percurso do fotógrafo fascina-a, mais do que nunca, desde que descobriu traços familiares na sua obra. «No ano passado, o meu tio-avô Juan Romero veio visitar-me e começou a folhear um livro. De repente, viu uma foto que o deixou branco: 'Esta é a minha mãe!' A mulher em cima de um burro, com uma criança nos braços, é a minha bisavó Josefa. E a criança era ele.» Todos os refugiados fotografados a 5 de Setembro de 1936 eram de Cerro Muriano.
Descobrir o local exacto da fotografia do «miliciano», através da análise topográfica das montanhas que surgem em fundo pode parecer complexo, mas não deixa margem para dúvidas a quem ali cresceu.
«Não há duas montanhas sobrepostas desta forma em toda a região», assegura Fernando Penco, apontando para a elevação de Cerro de los Santos, que se vê em segundo plano, atrás de Cerro de la Coja: a colina, já dentro da aldeia, onde o miliciano foi atingido.
Esse «monte da coxa» assim designado porque ali morava uma mulher que perdeu uma perna nos bombardeamentos de 1936, protegia uma casa da Guarda Civil, hoje Museu do Cobre, onde os republicanos instalaram tropas. E aí aguardava igualmente Capa com a namorada alemã (também fotógrafa), Gerda Taro, pela oportunidade de registar a primeira vitória republicana contra Franco.
Como recorda Cornell Capa, irmão mais novo de Robert, no prefácio do livro Capa: Cara a Cara, o casal tinha viajado para Espanha pela mesma razão que os voluntários de todo o mundo: lutar contra o fascismo. «As câmaras eram as suas armas.» Contudo, o momento da vitória roja não chegaria. As tropas franquistas adiantaram-se e, em supremacia, aniquilaram os insurgentes. Segundo o diário das operações do General Varela, comandante nacionalista, as movimentações começaram às cinco e meia da manhã, com as tropas dividas em três grupos. A maioria dos soldados era de Ceuta e Melilla (Marrocos), mais de 500 homens que foram tomando o terreno «com pequenos avanços». A infantaria era apoiada pela aviação, que lançava bombas incendiárias.
«Pela manhã, começámos a ouvir o murmúrio entre as gentes da aldeia: 'Vêm aí os mouros!' E logo se instalou a desordem.» Os dedos de Paco Montilla apertam com força o cabo da sua bengala. Tinha apenas 7 anos mas lembra-se de tudo como se tivesse sido ontem. «Havia uns quantos republicanos no Cerro de la Coja disparando com espingardas contra as avionetas».
A sua mulher, Lourdes Córdoba, é mais velha dois anos mas lembra menos pormenores. Tem presentes os gritos assustados das gentes e a hora a que a sua família fugiu, sem tempo para agarrar em nada: «Perto do meio-dia.» E, de forma bem vívida, recorda os camiões militares que iam parando para recolher os refugiados, que fugiam em pânico de Cerro Muriano. Também Ramón Lozano, 79 anos, confirma que o povo fugiu de manhã. «A minha irmã estava a lavar roupa no ribeiro quando apareceu um homem gritando: 'Corre para casa que começou a guerra!' Ela veio avisar-nos e logo a seguir apareceu uma avioneta a lançar bombas. Saímos com a roupa que tínhamos no corpo.» E Pedro Gallego Moreno, 73 anos, cresceu a ouvir as histórias de Juan, o marido da «coxa» Filomena. «Dizia que os mouros subiram em leque, desde manhã, pelo caminho dos Pañeros.»
O momento em que a população abandona Cerro Muriano tem especial relevância para determinar a hora da morte do «miliciano» um factor fundamental para averiguar a sua veracidade. Nas cópias dos arquivos da agência Magnum (fundada também por Capa), a numeração cronológica original indica que é exactamente anterior às da série dos refugiados. Segundo os testemunhos ouvidos pela VISÃO, só pode ter-se realizado antes do meio-dia.
Patrício Hidalgo, um tenente-coronel apaixonado pela história da guerra civil, determinou que o «disparo» de Capa aconteceu às nove e meia da manhã (hoje, uma hora a mais). «Penso que o sol a 5 de Setembro terá mais ou menos a mesma inclinação, seja em que ano for. Partindo desse princípio, a 5 de Setembro de 2004 subi ao Cerro de la Coja. Pus-me no sítio em que esteve o miliciano e estudei a projecção da minha sombra.»
O investigador comparou também a luz das outras fotos de Capa com as de Hans Namuth, um fotógrafo que chegou a Cerro Muriano no mesmo dia, mas à tarde. As primeiras imagens que tirou revelam o mesmo tipo de sombras que podem ver-se nas foto dos refugiados de Capa, caminhando junto a uma linha de comboio, nos arredores de Estación de Obejo. «Isso indica que quando Namuth estava a chegar, Capa partira há pouco», considera.
O«miliciano» foi identificado como Federico Borrell, ou «Taino», num artigo do Observer, em 1996. O jornal britânico publicou que o investigador Mário Brotons Jordá tinha seguido a pista das cartucheiras que trazia à cintura: um adereço das milícias de Alcoy. Brotons contava que fazia pesquisas para um livro sobre a guerra civil quando encontrou registos referindo que o único militar de Alcoy morto a 5 de Setembro em Cerro Muriano era «Taino». Não havia lugar para dúvidas.
O biógrafo «oficial» Richard Whelan e a família de Capa aceitaram essa versão, achando que assim acabava a controvérsia. Contudo, ficava por explicar quem era o outro homem morto no mesmo local, que Capa fotografa a seguir e publica na revista francesa Vu, a 23 de Setembro de 1936.
A teoria complicou-se quando Miguel Pascual, um investigador de Alcoy, encontrou o testemunho do soldado Enrique Borrell, ao jornal Ruta Sindical, em 1937: «[Nesse dia] às 2 da tarde fomos chamados para reforçar uma frente que estava a ser atacada pelas tropas fascistas. 'Taino' posicionou-se atrás de uma árvore, de onde ia disparando para o inimigo. Mas o fogo era muito intenso e uma das balas acertou-lhe no coração. Eram 4 da tarde.» Estes dados indicam que «Taino» terá morrido em Malagueñas, um monte vizinho de Cerro de la Coja que, com Torreárboles, era determinante para a defesa dos republicanos.
A tese de Brotons caiu definitivamente por terra quando, em 2003, o jornalista Alex Kershaw, autor de outra biografia de Capa, Sangue e Champanhe, procurou os registos da morte de «Taino». Todos os directores dos arquivos nacionais de Espanha negaram existir tal documento.
Há outros pormenores que Richard Whelan investigou ao longo dos anos, para construir a defesa de Capa. Em 2000, pediu ao chefe do Departamento de Homicídios da polícia de Memphis, nos EUA, que analisasse a imagem. O capitão Robert L. Franks disse que difi cilmente seria uma encenação. Por dois motivos: as plantas dos pés estão apoiadas no chão e a mão esquerda do soldado encontra-se semicerrada. «A contracção dos dedos contra a palma da mão indica claramente que os músculos do homem relaxaram estava morto. Numa foto encenada, a mão estaria aberta, amparando a queda.»
Para o biógrafo, a história da imagem é simples e resume-se nas linhas que a fotógrafa da revista Life, Hansel Mieth lhe escreveu, em 1982. «Um dia, muito alterado, Capa contou-me as circunstâncias em que se realizou aquela foto:
-Estávamos todos na palhaçada, não havia disparos. Eles começaram a correr pela ladeira. E eu também.
-Pediste que encenassem um ataque?
-De modo algum. Estávamos contentes... Pode ser que estivéssemos um pouco loucos, até.
-E depois?
-De repente, converteu-se em algo real. Ao princípio não ouvi o disparo.
-Onde estavas tu?
-Ali mesmo, um pouco mais abaixo, ao lado deles.»
Capa deu a entender que o episódio o atormentava e se sentia responsável pela morte daquele homem. Por isso teria tanta relutância em falar do assunto. Olhando para a sequência das fotos realizadas em Cerro Muriano, a versão faz sentido. Antes da morte do «miliciano», há uma em que onze soldados se alinham no topo da trincheira, acenando com as suas armas.
Indiferentes à controvérsia, os habitantes de Cerro Muriano estão fascinados com o interesse que o mundo subitamente dedica à sua terra, onde Capa fez algumas das 205 imagens da guerra civil espanhola doadas pelo irmão, em 1999, ao Museu Nacional Rainha Sofia, de Madrid. Ignoram talvez que o homem baptizado como André Friedman, na Hungria, e que se reinventou, ao fugir do nazismo, como um fotógrafo americano chamado Robert Capa, nasceu verdadeiramente ali, em Cerro Muriano. Um mês depois, abandonava o país desolado, lamentando as vitórias rojas que não conseguira fotografar, e chorando a morte de Gerda, vítima de um acidente de automóvel.
«Um pouco dele morreu com ela também», acredita Cornell, que revelava os filmes que o irmão lhe enviava para Paris, enquanto corria mundo. Registou cinco grandes guerras e foi o único fotógrafo a testemunhar o dia D, desembarcando com as tropas americanas na Normandia. A sua valentia não o livrou do encontro com a morte, na Indochina, em 1954. Tinha 41 anos. Pisou uma mina quando tentava chegar um pouco mais perto.
(Reportagem de Patrícia Fonseca e Bruno Rascão, publicada na revista Visão a 5 de Setembro de 2006, 70 anos depois de Robert Capa ter fotografado «A morte de um miliciano»)
3 comentários:
Orgulho-me de ter visto uma exposição das fotos de Robert Capa.
Parabéns por esta excelente reportagem.
Obrigada!
Excelente! Obrigado! :)
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