terça-feira, 25 de janeiro de 2011

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Tragédia no Rio

 (Foto: Severino Silva/Agência O Dia)


"É um terror, nem sei dizer. Metade do morro desabou"
Por Alexandra Lucas Coelho, em Teresópolis (Público)


"... não tinha luz, não tinha água...."

"... a estrada sumiu..."

".... eles morreram..."

Autocarro Rio de Janeiro-Teresópolis, ontem de manhã.
Silêncio, e gente ao telefone, a saber da gente.
Silêncio e uma mulher a soluçar.

 
Avançamos para norte e depois para nordeste. Teresópolis fica entre Petrópolis e Nova Friburgo, a meio da região serrana que de terça para quarta-feira foi devastada pelas chuvas. A grande subida começa uma hora depois da partida. É a formidável Serra dos Órgãos, com morros que metem medo, de tão altos e nus. Cá em baixo a vegetação é luxuriante. Hortênsias azuis vizinhas de bananeiras. Atlântico tropical.

Mas que estamos bem na serra vê-se pelos anúncios de queijos.
É paisagem de veraneio e férias. Muitos cariocas têm aqui casa, ou alugam pousadas. Há chalés, mansões, campos de cavalos. Mas também há encostas favelizadas, com barracos de tijolo. Ricos e pobres.
O autocarro contorna as curvas devagar, o abismo cresce, primeiros sinais de encostas caídas, uma ambulância de resgate. Mais um inquietante horizonte de morros. "Grota do Inferno" anuncia uma placa. O céu está cai-não-cai, cinza, chumbo.
Subimos e subimos. Aparece o pico conhecido como Dedo de Deus, uma rocha em forma de dedo gigante, célebre entre alpinistas. À esquerda uma cachoeira transbordante e o autocarro entra em Teresópolis. Nenhum vestígio de destruição na cidade. Mas vestígios da calamidade, sim: raparigas com faixas a pedir comida e roupa, engarrafamentos com carros que vieram trazer ajuda, jipes da Defesa Civil e carros de Bombeiros.
Na prefeitura, Sílvia e Mara actualizam o número de vítimas só em Teresópolis: 158 mortos [que ao começo da noite já serão 208], 1300 desalojados, 1200 desabrigados. "Desalojados são os que ficaram sem casa, mas estão a ficar com parentes. Desabrigados são os que não tinham para onde ir."
Estão no polidesportivo Pedrão, a duas ruas daqui. Carros e carrinhas a descarregarem sacos e caixas. "Roupa! Roupa! Roupa!" Os sacos passam de mão em mão. Em horas, a sociedade civil carioca mobilizou-se. E passando a entrada é difícil não ter um choque. Porque lá dentro é um gigantesco acampamento, com velhos e crianças enrolados em mantas. Toda a pista está coberta por colchões, gente e trouxas enroladas. E as bancadas a toda a volta repletas de sacos.
Por exemplo Robson, este mulatão de tronco nu, ao lado de uma menina. Está aqui com dez pessoas da família, e cinco são crianças. "A terra caiu e derrubou tudo, casa, carro, não sobrou nada", conta. Foi a meio da noite, de terça para quarta, quando uma tromba de água rebentou sobre os morros. "Eram três da manhã, estávamos em casa a dormir. Quando caiu a primeira terra, a gente conseguiu fugir. Escutámos na hora em que a água bateu. Começou a cair árvore, tudo começou a fazer barulho."
Mas Robson fala sereníssimo. "Não precisamos de nada. Tem água, tem comida, tem roupa. Está tudo bem." Só falta a mãe. "Ficou isolada, num lugar onde agora ninguém entra nem sai, no bairro de Caleme."
Caleme é uma freguesia metida no mato, junto ao morro. Para lá chegar faz falta um táxi que não se incomode com a lama e sobretudo a ajuda preciosa de Jorge Maravilha, um camaraman da prefeitura que chama a toda a gente Maravilha e toma a peito a missão de fazer chegar o PÚBLICO lá ao fundo.

O taxista avança entre encostas de barracos que dão lugar a sebes luxuosas, até que à nossa frente aparece um morro com uma grande lasca de terra arrancada. Uma das que desabou, engolindo casas, carros, postes e estradas. "Nossa Senhora, vai ter de desabitar tudo aquilo!", exclama Maravilha e, apontando as casas na encosta. "Vamos torcer para que não chova mais." Mas já está a chover. "Ontem filmei cadáveres em cima de árvore como bola de Natal." O taxista reforça: "Sou da terra e nunca vi nada assim."
A pé na enxurrada

Passamos um clube de golfe e um clube hípico, contornando uma escavadora coberta de lama. Tufos de hortênsias, lá em cima helicópteros. Uma placa anunciando Condomínio Roseiral. Casas luxuosas. "Superluxuosas", emenda Maravilha. "Cinematográficas."
E agora a rua acabou. O táxi, que já chegou aqui porque é um 4x4, tem mesmo de parar. Imaginem um piso de paralelepípedo. Agora imaginem esse piso destruído por uma bomba. É o que temos à frente dos olhos. Caminhamos sobre montanhas de pedras, misturadas com troncos.Será uma longa caminhada. Lama, água barrenta, árvores arrancadas ao longo das bermas, postes de electricidade caídos à nossa frente. E um carreiro de gente indo e vindo, de chinelas ou de galochas, transpirada, enlameada. "Lá em cima vão com calma, porque o clima "tá foda", avisa um conhecido de Maravilha, que vai voltar à cidade. "Tem corpos no chão."
Continua a chover. A mulata Rosa vai de chapéu aberto e chinela ao nosso lado. "Vou ver da minha irmã, das minhas sobrinhas. Fui até à delegacia [onde estão os nomes dos mortos], mas os nomes delas não estavam lá." Milhares de pessoas circulam assim, em busca de parentes. Há centenas de desaparecidos. "É um terror, nem sei dizer. Metade do morro desabou. E os telefones não estão funcionando."
Aqui choveu em uma noite o que devia ter chovido num mês.
Rosa pára de repente, porque o caminho está interrompido por uma enxurrada. Para continuar, temos de meter pela sebe de uma grande propriedade. O dono está a deixar toda a gente passar pelo caminho interno em direcção ao morro, explicam os guardas Ivan e Cláudio, que vão orientando quem passa. "Aqui ao lado morreu muita gente", diz Ivan, apontando a encosta. "Tem ricos e pobres, mas 90 por cento dos mortos são os menos favorecidos." Porque não têm quem alugue um helicóptero - como fez por exemplo um músico da banda Kid Abelha para resgatar os filhos, aqui - e sobretudo porque moram em casas piores, e em lugares mais arriscados.
"É um absurdo a prefeitura permitir que construam nessas áreas", indigna-se Ivan. Maravilha tenta relativizar: "Ah, não tem como prever. O morro desceu todo." Ivan insiste: "O que é que o prefeito fez para proteger o pessoal que mora aqui?"
Marco António Roit, dono da propriedade, aparece a caminhar no relvado aparadíssimo. Parece uma propriedade inglesa, mas com os trópicos nas costas. "Isto era de uma família de grandes industriais e fazendeiros, os Guinle, donos do Copacabana Palace", explica. Tem 47 anos, é empresário de construção civil. Na noite de terça para quarta estava em São Paulo. Só conseguiu chegar aqui na tarde de quarta. "Abri logo a passagem porque a rua estava destruída. Para que a comunidade pudesse passar, ambulância, defesa civil... As pessoas estavam desesperadas. O pessoal da propriedade recolheu três corpos e colocou-os ali no gramado."
Atravessamos o atalho dentro da propriedade até ser possível voltar à ex-estrada. Passamos por baixo de um poste de electricidade. Trepamos a raízes arrancadas. "Tiraram mais dois corpos agora", diz um rapaz que vai em direcção contrária. "Era um casal dormindo junto." Como em Pompeia.
Continua a chover, mas a maior parte das pessoas caminham sem chapéu. ""Tá "brabo" ali..." alerta um homem, apontando para a frente. Agora o morro meio desabado está mesmo à nossa frente, e a estrada é uma torrente de água. As pessoas estão a passar por uma longa tábua suspensa. "Não olha para baixo, olha em frente", vai avisando Maravilha, que quer ajudar toda a gente.
O bebé no muro

À direita, uma casa destruída, com o rio de barro atravessando as salas, arrastando árvores. Gente exausta, encharcada, de luvas. E à esquerda gente a chorar, saindo de um portão. É a entrada de uma casa com um relvado. Um grupo rodeia um impermeável preto. Quando nos aproximamos, vemos formas humanas debaixo do impermeável, pés a saírem, embrulhados em mantas.
"Aqui estão três adultos e um bebé", diz o cabo Rodrigo Melo, da Polícia Militar. É daqui mesmo, da freguesia. Conhecia dois mortos pelo nome, o tal casal: "Liliane e Robson. E o bebé tinha dois meses. Encontrámo-lo agora, há uns 15 minutos." Não era filho do casal. "É de uma família ali", aponta o cabo. "Foi tirado daquele muro. Veio arrastado e parou ali no muro." Baixa a voz. "Estava prensado." Fica em silêncio. Ficamos todos em silêncio.
"Olhe, a tia do neném está chegando ali...", diz o cabo Rodrigo. As pessoas juntam-se todas em volta de uma rapariga. Um dos voluntários levanta o plástico preto. A rapariga debruça-se. Confirma que é o sobrinho. As pessoas desfazem a roda. Ela afasta-se. O plástico fica afastado, deixando ver uma trouxinha embrulhada num lençol branco. "Chamava-se Iuri", diz um dos voluntários.
Homens e rapazes cheios de lama. "O dono desta casa liberou para a gente botar aqui os corpos." Todos estavam aqui na noite de terça para quarta. "Escutei como se fosse um estalo muito forte", conta o cabo Rodrigo. "Era a cabeça-de-água que estourou na pedra. Eram umas três da manhã. Aí saímos de casa e começaram os gritos. As pessoas queriam descer para ajudar, mas deparavam-se com a força do rio. E as pessoas a gritarem por socorro, a serem arrastadas, jogadas contra o muro, a tentarem subir..."

Clayton, 24 anos, estudante de Direito da universidade de Teresópolis, "nascido e criado aqui", não dorme desde que começou a ajudar. "Retirei corpos da lama, fui buscar água, ajudei na condução, agora estou tomando conta dos corpos. Todos os que estão ajudando são moradores do bairro. Solidariedade nunca é de mais. O bairro inteiro está sem dormir. Não tem luz, não tem telefone, a água acabou. Eu moro ali naquela rua destruída pelo rio, mas a minha casa não corre perigo. Acho eu." Contou 22 corpos só neste lugar, desde ontem.

Subindo à rua destruída, Wanderleia, 42 anos olha para o rio, em catadupa, cercado de raízes e árvores. "Morreu uma senhora ali, que a água levou", aponta ela. "E aqui mais dois." Não ouviu o estalo ou estrondo de que muitos falam. Acordou a meio da noite com "um cheiro muito forte de raízes, de mato", e a cunhada a gritar. "Peguei nas crianças e saímos correndo."
De regresso, caminhando, cruzamo-nos com dezenas de voluntários com sacos de mantimentos e roupa, em direcção ao morro. Uma negra meio surda brada no meio da rua, ou do que foi a rua. "TUDO TEM UM TEMPO!" Chama-se Sueli Machado e tem 62 anos. Primeiro dormiu lá no polidesportivo, depois mudou-se para um abrigo da Igreja Metodista. "Perdi a parte da frente da minha casa, o meu carro foi embora no rio, e o rio virou um mar de areia. Agora vim ver. Preciso de tirar as minhas coisas." E já ao longe grita: "PERDI O ANEL MAS FICARAM OS DEDOS. E A FÉ EM DEUS!"
No autocarro para o Rio, um homem completamente enlameado abraça um menino de galochas totalmente cobertas de lama. "Descemos pelo mato 50 minutos, a abrir caminho com uma faca, e depois caminhámos três horas", conta. Deixaram tudo para trás. Soltaram os animais. É a casa de férias, num condomínio. "Morreu muita gente lá e a estrada acabou. Ficou totalmente destruída."

Ao sair do autocarro, com a sua roupa suja, e os seus sapatos empapados de lama, o homem estende-nos o cartão, feliz de ter chegado à rodoviária. Chama-se Sergio Bruni. É o vice-reitor da Pontífica Universidade Católica do Rio de Janeiro.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Haiti, um ano depois

(Haiti, Janeiro de 2010/Patrícia Fonseca)

Foi há um ano. Sete graus na escala de Ritcher. 230 mil mortos.
Na tradição vodu, tão importante no Haiti, acredita-se que a alma dos mortos mergulha nas profundezas do mar e aí permanece durante um ano e um dia. Ou seja, as grandes cerimónias fúnebres recordando os mortos não acontecerão hoje mas sim amanhã. Milhares de famílias seguirão os sacerdotes vodu, rezando pelas almas que se libertarão das águas, pedindo para que reencarnem pacificamente nas árvores. Os haitianos dizem que, se ouvirmos atentamente quando o vento sopra, lá estarão, em sussurro, as vozes desses espíritos, tentando comunicar com o mundo dos vivos.
Eu não os ouço. Mas ainda ecoam em mim os lamentos dos que sobreviveram.
Tenho pena de não ter podido voltar a Port-au-Prince. Hoje gostaria de estar lá e de poder encontrar alguma explicação para o facto de só terem ainda retirado 5% do entulho que soterrou a cidade. De perceber porque raio não consegue Bill Clinton coordenar as mais de 4000 ONG's no terreno, a bem da população. Porque ainda existem mais de um milhão de pessoas em tendas, nas ruas, sem água nem saneamento, sem comida nem esperança.
As respostas não são fáceis de encontrar, eu sei. Mas algumas estão aqui, neste dossier do New York Times, e aqui, nas reportagens da enviada especial do El País. Ou neste artigo do Paulo Moura, no Público de hoje, As pedras ainda não saíram de cima de nós.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Leitura da semana


A primeira edição do ano da Time tem Aung San Suu Kyi brilhando na famosa moldura vermelha da publicação norte-americana. A «primeira-dama da liberdade», como poeticamente lhe chama a jornalista Hannah Beech, fala, numa entrevista exclusiva, sobre a sua frágil liberdade e os sonhos de democracia para o seu povo.
A fotografia de capa é do famoso retratista Platon (vencedor do World Press Photo em 2007 com um retrato de Vladimir Putin), que, pouco habituado ao suor e sangue do fotojornalismo, partilha neste vídeo as dificuldades sentidas para fotografar Suu Kyi em Rangoon, fugindo à polícia militar birmanesa.