sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O Inferno

(Foto: Timothy Fadek/Time)

Desculpem a ausência. Estive no Haiti. Prometendo voltar em breve a partilhar neste blog o que mais gostei de ler por aí, aqui fica a primeira reportagem que enviei de Port-au-Prince, publicada na revista Visão de 21 de Janeiro.
----------------

O Inferno

Primeiro veio o terramoto, que arrasou a capital do país. Agora chegam os gangues armados, semeando a violência pelas ruas, onde o cheiro dos corpos putrefactos torna o ar irrespirável. Sem tempo para chorar os seus mortos, a população de Port-au-Prince luta desesperada pela sobrevivência, numa cidade onde tudo falta – até a paz

Por Patrícia Fonseca, enviada especial

Uma multidão, correndo como uma manada assustada, ocupa toda a largura da Grand Rue, a artéria principal do centro de Port-au-Prince. Homens e mulheres, velhos e crianças, fogem o mais depressa possível e na mesma direcção – a contrária ao local onde a BIM, a Brigada de Intervenção Motorizada do Haiti, acaba de chegar, disposta a acabar com os saques que se multiplicam nas lojas que ruíram naquela zona comercial, na sequência do terramoto do passado dia 12.

Os polícias furam um enxame de gente com coletes à prova de bala, capacete e shotguns. Gritam e disparam tiros para o ar mas têm ordens expressas do chefe da segurança presidencial: atirar a matar contra aqueles que não se rendam e entreguem as suas armas. É a tentativa desesperada de colocar ordem numa situação que ameaça tornar ainda mais insustentável a vida dos habitantes da capital do Haiti: uma cidade que, já antes do sismo, era uma das mais pobres e violentas do mundo.

Entre a população apavorada que foge, carregando o que conseguiu roubar (bolachas, arroz, rádios a pilhas), vêem-se ainda grupos de rapazes armados, de sorriso trocista, escondendo pistolas e facas nas calças. Outros têm nas mãos armas menos convencionais, como garrafas partidas, tesouras, martelos ou espetos de metal.

Os que foram apanhados pela polícia, ainda no topo ou no interior dos edifícios em escombros, já não sorriem. Da amálgama de cimento e ferro que é agora o supermercado Authentic, saem de forma ordeira, de olhos no chão e mãos no ar, passando em fila perante um polícia corpulento que os obriga a levantar as t-shirts. Os que têm armas escondidas ficam sem elas. E descem depois, a alta velocidade, pelas ruínas do supermercado, arriscando cair de uma altura de uns cinco metros, para escapar a uma bastonada.

A Grand Rue é um dos locais mais apetecíveis da cidade para as pilhagens que se multiplicaram em Port-au-Prince desde a passada sexta-feira. Contudo, nesta grande avenida comercial, agora reduzida a uma mistura de entulho, lixo e cadáveres, vêem-se ladrões de dois tipos. Uns pertencem a gangues armados, famosos por espalharem o terror nos bairros da cidade – como o grupo de Blade, um assassino que escapou da prisão de Carrefour na sequência do terramoto (com outros 3 500 prisioneiros), líder mítico de um dos grupos mais temidos. Em sua honra escreveram-se canções rap mas o seu reinado terminou há poucos dias, num banho de sangue. «Quando fugiu da prisão roubou uma M16 e uma Uzi, andava a roubar e foi abatido numa troca de tiros com a polícia», revela Roger, um inspector da judiciária haitiana que assistiu com a VISÃO aos saques da Grand Rue, na passada terça-feira de manhã.

Os outros ladrões são apenas pessoas famintas e desesperadas, que lutam pela sua sobrevivência. E perante essa gente, as autoridades vão fechando os olhos. É que, apesar das toneladas de comida que já chegaram de todo o mundo ao aeroporto internacional, a ajuda tarda em chegar à população. «Motivos de segurança», justifica a ONU. «Abandonaram-nos», repete-se em coro nos campos de refugiados.

«Se não vier comida e água urgentemente, a violência vai disparar», assegura Roger. «Um homem com fome é capaz de tudo. Até de matar.»

Água, água, água

O ambiente tenso alastra pela cidade e ganha força a cada dia que passa. Nas ruas há um formigueiro de gente permanente, de olhar esgazeado, andando sempre em passo acelerado, como quem está atrasado para um compromisso importante. Na verdade, tentam escapar a um encontro com a morte. E caminham quilómetros infindos durante o dia, procurando locais onde possa haver comida ou água. Não há qualquer informação sobre os locais de distribuição da ajuda humanitária – algumas organizações têm optado por fazer entregas de surpresa, para evitar tumultos, os miltares dos EUA lançam alguma comida a partir dos seus helicópteros. São meras migalhas face às monumentais necessidades da população.

Em desespero, há cada vez mais pessoas a tentar abandonar a capital, em direcção às zonas rurais, menos afectadas pelo sismo. Mas para fugir é preciso descobrir transporte – e com o preço da gasolina, que na terça-feira atingia já os 100 euros por galão (cerca de 4 litros), raros são os que têm posses para considerar essa opção.

Nos mercados locais, os poucos bens que se encontram à venda atingiram preços astronómicos. Vêem-se algumas bolachas, molhos de urtigas, garrafas de óleo e pouco mais. É quase impossível encontrar uma garrafa de água e as que existem podem custar até 5 euros – uma fortuna para uma população que, antes do terramoto, já figurava entre as mais pobres do mundo, sobrevivendo, em média, com menos de 75 cêntimos por dia. Nas ruas vêem-se muitas mulheres a apanhar a água azulada e putrefacta que corre pelas valetas da cidade. O que farão com ela, é difícil imaginar.

A água é uma das necessidades mais prementes e a organização brasileira Viva Rio é uma das poucas que está presente na cidade, a fazer distribuições diárias. «Estamos a distribuir em Belair, onde montámos quiosques de abastecimento, e no campo de refugiados de Kay Nou», diz André D’Ávila, coordenador deste projecto. A água está a chegar de avião, com a ajuda do exército brasileiro, que comanda a missão de paz da ONU, a Minustash, presente no território desde 2004.

Em Kay Nou, um antigo complexo industrial que abriga cerca de 1400 pessoas, o dia começa com um funcionário da ONG a gritar ao megafone as notícias que todos mais querem ouvir: «Vamos distribuir água das três às quatro da tarde», repete sem cessar, furando caminho por entre as tendas ali montadas, a abarrotar de mulheres e crianças. Ali pernoitam muitas das pessoas que, há uma semana, viviam nas casas daquele bairro – muitos até tinham trabalho e uma vida menos má, num país onde o desemprego atira para a pobreza extrema mais de 60% da população. «Perdemos tudo, só nos resta Kay Nou… não sei o que seria de nós sem a ajuda dos brasileiros», diz Pierre Louis, 36 anos, um professor de inglês que agora dorme no chão, nos dias em que consegue fechar os olhos. Ironicamente, acaba por explicar, «Kay Nou» significa, no crioulo falado pela maioria da população, «a nossa casa».

Este campo de refugiados acaba por ser, em comparação com as centenas de acampamentos desorganizados que nasceram na cidade, um pequeno oásis de calma, um dos raros sítios em que, além de água, se sente o cheiro da comida a fervilhar nas panelas.

No resto da capital, é o cheiro dos esgotos que domina, misturado com o do lixo que forra todas as ruas da cidade e com o odor dos milhares de cadáveres em decomposição, soterrados debaixo dos escombros – o que obriga toda a gente a andar de cara tapada. Quem não tem máscara usa lenços, camisolas, toalhas enroladas na cabeça. Há quem caminhe com pedaços de limão junto ao nariz ou enfie pasta de dentes nas narinas.

O calor que se faz sentir, sempre perto dos 35 graus, também não ajuda. Tal como as queimadas que se fazem a cada esquina da cidade, misturando lixo, pneus, pedaços de madeira e carcaças de carros. Mas também corpos. Depois de dias com milhares de cadáveres amontoados nas ruas, a população acabou por lançar fogo a muitas das vítimas que as autoridades não conseguiram recolher. Ainda se avistam algumas dessas piras fumegantes, em vários pontos da cidade. E há cadáveres que subsistem, já inchados e cobertos de moscas, à beira dos passeios. Ainda assim, até à passada segunda-feira a ONU estimava que 75 mil pessoas já haviam sido sepultadas em valas comuns - sem haver tempo para os identificar ou, sequer, num país onde a religião tem tanta importância, rezar uma prece pelas suas almas.
Em busca de sobreviventes

Durante a primeira semana após o terramoto, a prioridade foi dada aos vivos. Ainda há milhares de feridos graves sem qualquer assistência médica, incapazes de se deslocarem até aos poucos hospitais existentes. As equipas médicas viram-se também sem capacidade para socorrer todos os que os procuraram, debatendo-se com a escassez de meios materiais e humanos. Ainda assim, equipas como a do hospital La Paz, em Port-au-Prince, conseguem manter uma média de cerca de 700 cirurgias diárias – a maioria das intervenções são amputações de membros esmagados.

Muito atarefadas andaram também as 40 equipas de salvamento que chegaram ao Haiti, vindas de todo o mundo, para tentar descobrir sobreviventes. Até terça-feira, oito dias depois da catástrofe, resgataram 72 pessoas dos escombros. Johann Viggo Jorsoon pertence a uma equipa islandesa, com 36 elementos, que aterrou no Haiti menos de 24 horas depois do sismo. Na segunda-feira, 18, passaram o dia em busca de uma mulher que, segundo alguns familiares, teria conseguido fazer um telefonema nessa manhã, indicando estar presa debaixo de dois andares do prédio onde morava. «Disse que estava perto da torneira da água, estamos a tentar descobrir em que zona da casa seria», explica Johann, enquanto tenta comunicar, a custo, com os vizinhos que sobreviveram. As versões são contraditórias, é difícil perceber onde foram parar as divisões da casa, num prédio que parece ter sido implodido. A custo, vão escavando túneis de acesso a zonas de vácuo, criadas entre as placas de betão. Mas dali saem apenas tijolos, roupas, uma mala de outra senhora, com todos os seus documentos de identificação. «Essa está viva, é minha prima, está no campo de refugiados», explica um dos habitantes do bairro.

Ao final do dia, os islandeses, já exaustos, pedem reforços: a equipa K9 norte-americana, com um cão especializado a farejar sobreviventes. O cão mergulha veloz em todos os buracos existentes, regressando com o pelo preto coberto de poeira. Sempre que reaparece à superfície, instala-se um silêncio pesado, esperando para ver se ele faz a tão desejada marcação. Mas fica impávido, olhando o seu treinador, uma e outra vez. «Talvez fique baralhado com a intensidade do cheiro dos cadáveres…», diz Johann, que também esteve no interior do edifício e sabe como o ambiente era irrespirável. «Não podemos fazer mais nada, revirámos tudo. Introduzimos também câmaras nos locais mais inacessíveis e não a encontrámos. Também é possível que ainda estivesse viva de manhã e agora [ao final do dia] já não esteja», explica, resignado.

A equipa abandona o local com grande desânimo, perante uma multidão de gente que esperava, na rua em frente, por um milagre de vida, no meio de tanta mortandade. «Há dias assim, já ontem revirámos uma escola em busca de crianças sobreviventes e, infelizmente, das mais de 100 que sabíamos estar ali soterradas, não detectámos nenhum sinal de vida. Temos de nos agarrar aos momentos bons. No domingo salvámos três mulheres, num centro comercial. São esses rostos que temos de ter sempre presentes na nossa cabeça, para não desanimar.»

A equipa islandesa deverá regressar a casa nos próximos dias, explica Johann. «Sete dias é o limite para encontrarmos gente com vida. Mas às vezes os milagres acontecem…» A esperança é a última a morrer.
Um bairro-cemitério

É impossível saber quantas pessoas terão sobrevivido ao terramoto para morrerem dias depois, presas nos escombros. Na zona de Delmas 30, nos subúrbios de Port-au-Prince, os habitantes garantem que, até sábado, se ouviam muitos gritos de ajuda. «Mas não havia forma de os ajudarmos, não veio cá ninguém saber de nós e aqui ninguém tem máquinas ou ferramentas», lamenta Jimmy Agrelis, um pedreiro de 26 anos que fala com uma voz arrastada, como se estivesse anestesiado.

Delmas 30 era, até há 10 dias, um bairro residencial com casas de dois andares e canteiros de flores a adornar as entradas. Agora é um imenso cemitério de pedra, com centenas de habitantes sepultados debaixo dos escombros. À falta de outras informações, basta caminhar pelas ruas para confirmar os relatos dos habitantes: o cheiro dos corpos em putrefacção não engana. Os que sobreviveram apontam para cada ruína lembrando quem não escapou: «Ali vivia o dono da mercearia, morreu com toda a família...», explica Jimmy, mostrando o que resta da sua casa, ali mesmo ao lado. Quando a terra abanou, estava a dar os últimos retoques no lar que vinha construindo há anos. Órfão de pai e de mãe, mostra um documento atestando que cresceu em instituições de caridade. Nunca teve família, ia formar a sua este ano. O casamento estava marcado para Maio. Mas o terramoto arrasou todos os seus sonhos: a casa colapsou e, lá dentro, ficou a sua noiva.

Jimmy ainda não teve coragem para remexer na ruína, para resgatar alguns dos seus pertences, como fazem, na segunda-feira à tarde, todos os outros habitantes – apesar do perigo que isso representa, pois as estruturas que ainda subsistem de pé ameaçam ruir a qualquer instante. Jimmy tem receio de encontrar o corpo da sua Mauriline. Em lágrimas, abana a cabeça e diz não estar preparado para essa visão.

Aproveitando a última luz do dia – a cidade mantém-se sem electricidade -, os seus vizinhos trepam as estruturas, enfiam-se em buracos e, de vez em quando, saem com alguma coisa nas mãos: mantas, roupas e, nos casos mais afortunados, comida. É isso que a maioria busca. Porque em Delmas 30 há demasiada fome e nada, absolutamente nada, para comer.

Nos morros que rodeavam o bairro pernoitam agora 50 mil pessoas, em tendas improvisadas com pedaços de pano e de plástico. «Em sete dias, não veio aqui ninguém saber de nós», diz Christine Jean-Baptiste, uma avó de 53 anos que termina cada frase apontando para a barriga, suplicando comida. Em poucos minutos, já fala com uma multidão à sua volta, que grita cada vez mais alto, de forma exaltada. «Não há água, não há comida, os feridos morreram por aí, ninguém quer saber de nós, fomos abandonados!», refila mais alto que todos os outros Vilpigue Franz, um vendedor de 28 anos, líder de um comité popular organizado para impor a ordem no acampamento.

Sem comunicações, ignoram como o mundo de emocionou e mobilizou para os ajudar a superar uma das maiores catástrofes humanitárias de sempre. Os aviões militares não param de voar sobre as suas cabeças, com os ventres cheios de comida. Mas, uma semana depois do terramoto, esta gente continua na rua, sem abrigo, sem assistência médica, sem uma palavra de conforto – e de estômago vazio.

1 comentário:

Anónimo disse...

amiga, estás um pouco atrasada, tanto o Miguel como eu já publicamos esta reportagem hi hi hi. Beijos