sexta-feira, 6 de julho de 2012

FLIP: A poesia está na rua


Texto publicado no Portal Literal, Brasil:

Diário da Flip: a poesia está na rua

 “As notícias da minha morte foram exageradas.”  Mark Twain
É um lugar-comum muitas vezes repetido, mas é também uma evidência imediata para quem chega: Paraty é especial. Seja a brancura das fachadas imaculadas, seja a memória do tráfico negreiro, seja o esplendor azul do mar e verde do mato, sejam as ruas com pedras pé-de-moleque por onde circulam carroças com um vagar de antigamente – uma tranquilidade que desacelera o mundo e quem aqui chega. Paraty é um lugar ideal para se ler um livro. E para se escrever um livro.
É nisso que penso ao entrar no centro histórico da cidade, imaginando que, entre todas as pessoas que caminham pelas ruas ao entardecer, haverá já dezenas de escritores, enquanto outros estarão nos seus quartos de pousada, talvez escrevendo a página de um romance, talvez suspendendo a lâmina durante o barbear porque um poema assomou de repente no coração e partiu para o cérebro como uma bala perdida, talvez admirando os beija-flores que vão beber água aos jardins das pensões coloniais.
É uma visão romântica, esta de imaginar dezenas, se não centenas, de escritores numa cidade antiga e encostada no mar, todos eles inspirados e laboriosamente criando mais histórias, mais personagens, mais livros. Mas o que seria da literatura (e dos escritores) sem o romantismo?
Sem receio de parecer demasiado lírico, entrei na cidade onde até os cardápios dos restaurantes adaptaram a poesia de Carlos Drummond de Andrade, este ano homenageado na FLIP. As palavras do poeta, que faria 110 anos, andavam por toda a cidade, surgiam até projetadas na parede da igreja, na Praça da Matriz, fazendo-me lembrar dos tempos de inusitado otimismo lusitano, pós-revolução dos cravos, quando em Portugal se dizia e escrevia nas paredes: “a poesia está na rua”.
Sou suspeito: o meu ofício de escritor e editor providencia diariamente lenha para o lume do romantismo literário, fazendo-me acreditar que, tal como as notícias sobre a morte de Mark Twain, também as sentenças sobre a morte do livro são exageradas. E não falo apenas das tais dezenas de escritores recarregando a imaginação, nestes dias em Paraty, para depois irem rapidamente fechar-se no casulo de criação em Barcelona, no Rio de Janeiro ou em Manhattan. Não falo dos editores, agentes, livreiros, organizadores, moderadores e todos aqueles que, de uma forma bem pragmática (mas também romântica, espero), acreditam na sobrevivência do livro e continuam a produzi-lo, a divulgá-lo e a amá-lo.
É forte, a palavra amor. Mas sem contundência não há romantismo literário. E sem amor resta-nos apenas a burocracia. Não estou sozinho e muitos outros padecem do mesmo: não só os milhares que ouviram e aplaudiram e se riram com as palavras de Luis Fernando Veríssimo, na sessão inaugural da FLIP, como o próprio escritor, que declarou: “Aqui se celebra a permanência do livro.” E com a certeza das palavras de Veríssimo senti-me ainda mais entusiasta, lembrando-me de Javier Cercas, autor espanhol também presente na FLIP e que, num entrevista recente, quando questionado sobre o que pensava sobre o futuro do livro, respondeu: “Penso que é enorme.”
Depois da sessão de abertura, fortalecido pelas palavras de Veríssimo e de Cercas, voltei a passear pela ruas e a imaginar escritores e mais escritores trocando ideias para contos enquanto bebericavam cachaça de Paraty; ou autores imaginando trilogias fantásticas enquanto ouviam Caetano tocado por uma banda de rua; ou poetas ainda por revelar escrevendo em caderninhos o primeiro verso de um poema inventado à passagem de uma índia junto ao cais.
Por estes dias, milhares de leitores cruzam as ruas de Paraty, esgotam os ingressos da FLIP, escutam autores, leem seus livros, reduzem a velocidade, saciam o amor pela literatura sem pudor ou parcimónia.
Drummond escreveu: “A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos.”
Tenho a certeza que o poeta, além das pessoas, também se referia aos livros.
Hugo Gonçalves é autor de Fado, samba e beijos com língua (2011), entre outros títulos.

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