Absolutamente imperdível este «Dostoiévski em Saquarema», publicado na última edição da revista Piauí, sobre a morte da portuguesa Rosalina Ribeiro e as suspeitas que recaem sobre o seu advogado Duarte Lima, com a fabulosa vida de Lúcio Feteira em pano de fundo. Justíssima a menção (e citação) do trabalho do meu camarada e amigo Miguel Carvalho, que escreveu a biografia de Feteira, recentemente publicada pela QuidNovi. Boas leituras!
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Dostoiévski em Saquarema
O desaparecimento no Brasil da viúva de um bilionário, amigo
de Getúlio e JK, se volta contra político que é amigo do presidente de
Portugal.
por Plínio Fraga
Ela estava aflita. Buscava manter a aparência de calma em
meio ao turbilhão da contenda por uma herança de quase 1 bilhão de euros, mas
andava preocupada naqueles dias. A portuguesa Rosalina da Silva Cardoso
Ribeiro, de 74 anos, passou a tarde da segunda-feira, dia 7 de dezembro de
2009, arrumando as malas. Estava havia três meses num prédio na Praia do
Flamengo, e sempre comentava da vista do seu apartamento do 7º andar, de frente
para o Aterro e a Baía da Guanabara. Todos os anos, deixava Lisboa em setembro
e ficava no Brasil até o início do verão. Não foi diferente naquela vez, à
exceção do aborrecimento de obter a autorização da Justiça para tal, pois
enfrentava processos nos tribunais portugueses.
Rosalina trocou telefonemas naquela segunda-feira com duas
amigas e rascunhou uma carta em que dizia: “Parto para Lisboa no dia 12 de
dezembro se Deus quiser.” Contou a Maria Alcina e Rose, as amigas, que tinha um
compromisso à noite no restaurante Alcaparra, também na Praia do Flamengo, a
três quadras de seu apartamento. Com receio da bandidagem carioca, raramente
saía à noite. Mas, como tinha interesses a resolver, decidiu andar sozinha uns
poucos passos até o Alcaparra. Pôs um vestido estampado em branco e preto para
além do joelho – sem mangas para suportar o calor do verão tropical, mas com um
casaco preto à mão para o caso de o tempo virar. Não se esqueceu dos brincos,
com uma pedra azul rodeada por brilhantes, e do relógio, um Certina, suíço.
Ao sair do apartamento, colocou dois comprimidos sobre a
mesa da sala, para lembrar de tomá-los ao voltar, antes de se deitar. Andava
esquecida e anotava tudo em detalhes, prática adquirida em dezenas de anos como
secretária – e amante – de um empresário que fora um dos dez mais ricos do
mundo. Faltava menos de um minuto para as oito da noite quando entrou sozinha
no elevador. Levava debaixo do braço a bolsa e uma pasta de plástico transparente,
repleta de documentos. Foram 36 segundos até o térreo, tempo em que abriu o
zíper da bolsa, guardou a carteira e fechou-o novamente.
Deixou a portaria e saiu caminhando em linha reta. Um carro
utilitário cruzou de modo brusco a calçada logo depois que ela passou. Mas era
só um vizinho apressado ou mal-educado. A câmera de segurança de um prédio
próximo registrou a imagem de seus passos até as 20 horas, 3 minutos e 19
segundos. Foi a última vez em que Rosalina foi vista com vida.
Houve quem especulasse que poderia ter partido escondida
para gastar, em algum recanto paradisíaco, a herança à qual tinha livre acesso.
Se não há crime perfeito, existem lugares que parecem
perfeitos para o crime. Um estudioso viu duas centenas de filmes que têm o
Brasil como tema e anotou que, em quarenta deles, o país surgia como paraíso
recompensador para criminosos em fuga. No Rio, na conta mais otimista, em cada
mil assassinatos, a polícia descobre o criminoso em apenas 150 casos. Se é raro
que um crime seja elucidado, é ainda mais infrequente que o acusado seja um
renomado líder político, douto advogado e benemérito de instituições a que se
socorrem vítimas de câncer.
Rosalina Ribeiro trabalhou 32 anos como secretária de Lúcio
Tomé Feteira. Cortejador pouco discreto, o empresário lusitano não demorou
muito a seduzi-la, apesar de ser 34 anos mais velho. Pobre de nascimento,
Rosalina casou-se aos 19 anos com um madeireiro de 60. Com a morte dele, foi
trabalhar com Feteira. O empresário financiara uma fracassada tentativa de
derrubada do ditador português António de Oliveira Salazar (1889–1970) na
década de 40. Fora obrigado a fugir para o Brasil, onde se tornou amigo de outro
ditador, Getúlio Vargas. Montou duas fábricas de vidro, uma em São Paulo e
outra em Niterói, produziu cimento e comprou muitas terras para mineração e
agropecuária. “Era tanta terra que pensei proclamar-me o rei daquilo”, diria,
referindo-se ao Brasil.
Daqui, controlou seus negócios em Portugal, Angola e nos
Estados Unidos, onde foi sócio de um dos símbolos do capitalismo, David
Rockefeller, e conviva de um milionário do entretenimento, Walt Disney.
Circulando entre a política e a fortuna, Feteira ficou amigo de Juscelino
Kubitschek, Carlos Lacerda e Assis Chateaubriand, o barão da imprensa.
Ao morrer, no final de 2000, aos 98 anos, deixou fortuna em
quatro continentes. Em valores atuais, ela chega a 2,4 bilhões de reais, sendo
340 milhões em bens no Brasil.
O escritor e jornalista Miguel Carvalho lançou no mês de
novembro, em Portugal, o primeiro dos dois volumes da biografia Lúcio Feteira:
A História Desconhecida. Nele, contou que, em 1941, numa viagem a Portugal, o
então ex-presidente Washington Luís, depois de visitar uma fábrica de vidros de
Feteira, em Portugal, estimulou-o a investir no Brasil já no primeiro governo
de Getúlio Vargas. E me falou sobre a relação entre eles: “Getúlio vê em Lúcio
o protótipo do investidor estrangeiro que o Brasil precisava na época: ousado,
visionário e com dinheiro. As benesses que foram concedidas à indústria do
vidro por Getúlio foram imensas. O genro do presidente, Amaral Peixoto, foi
ainda mais próximo de Feteira. A ponto de Alzira, filha de Getúlio, ter sido a madrinha
da Covibra, a primeira fábrica de Lúcio no Brasil.”
Em 1945, o ditador brasileiro deu exclusividade a Feteira na
produção nacional de vidros, por dez anos, e triplicou os impostos de
importação do setor. À época, o empresário luso disse: “Getúlio Vargas conhece
tudo, sabe tudo, olha por tudo. E ainda tem tempo para fazer desporto (adora a
equitação e o golfe) e para seguir o que se passa nos campos literário e
artístico.”
Vinte anos depois, Feteira fez amizade com outro presidente
brasileiro. Com o golpe de 1964, Juscelino Kubitschek viveu três anos entre
Paris, Lisboa e Nova York. Em Portugal, o empresário pagou o apartamento no
qual JK se estabeleceu, envolveu-o em negócios imobiliários e conseguiu que o
Banco Português do Atlântico, do qual era um dos donos, lhe concedesse um
enorme empréstimo em condições camaradas. Também lhe emprestou dinheiro do
próprio bolso. Os dois eram vistos com frequência almoçando na fabulosa cantina
de uma das empresas de Feteira, nos arredores de Lisboa.
O biógrafo Miguel Carvalho contou-me o seguinte:
JK e Feteira eram muito parecidos, sobretudo nos excessos.
Os dois, como se sabe, mantinham relações extraconjugais e as suas estruturas
familiares foram de algum modo atormentadas por isso. Feteira afirmava:
“Juscelino foi um dos príncipes que conheci”, embora também dissesse que achava
JK uma pessoa muito deprimida, devido a motivos familiares. Quando JK faleceu,
Maria Lúcia Pedroso, com quem o presidente manteve uma relação amorosa de
dezoito anos, telefonou a Feteira e perguntou quanto JK tinha ficado lhe
devendo. “Esqueça isso”, foi a resposta.
Carvalho acha que o livro pode servir de base para um filme
sobre o empresário e, devido ao que aconteceu com a sua viúva, Rosalina, no
Rio, sonha em editá-lo no Brasil. Ele incluirá, no segundo volume da biografia,
uma carta manuscrita que JK enviou a Feteira, na qual agradece a cessão do apartamento
em que viveu:
Mesmo voltando para minha casa, deixarei aqui sempre este
“fogo” como meu traço de união entre mim e a boa e extraordinária gente
portuguesa. Ninguém, porém, foi tão bom para comigo como você. Ofereceu-me a
oportunidade que eu precisava e ajudou-me a participar de empreendimentos que
me auxiliarão a viver estes dias de adversidade.
O empresário casou-se oficialmente, em comunhão total de
bens, apenas com uma mulher, Maria Adelaide, com quem teve um filho que morreu
precocemente. Com uma telefonista de suas empresas, Maria Libania, teve uma
filha chamada Olímpia, que o pai só reconheceu na idade adulta e incluiu no testamento.
Feteira determinou que um terço de seus bens fosse destinado à primeira mulher
e um terço à única filha. O terço restante seria dividido entre Rosalina (15%
da fatia), uma sobrinha que o ajudou no final da vida (5%) e uma fundação de
nome Família Feteira (80%), a ser criada.
Com a morte de Feteira, no final de 2000, tiveram início os
conflitos entre os herdeiros. As desavenças entre Rosalina, a amante, e Olímpia
Feteira, filha da relação extraconjugal, deram origem a vários processos, no
Brasil e em Portugal. “As duas nunca se entenderam”, disse Carvalho. “Olímpia
sempre viu Rosalina como uma mera concubina, interessada na fortuna do pai.
Rosalina garantiu que teve uma relação amorosa com Feteira por mais de trinta
anos, até a morte dele. Olímpia foi apelidada de ‘víbora’ pelo pai, que chegou
a lhe escrever cartas muito duras, uma das quais acusando a filha de só pensar
em dinheiro e malbaratar tudo aquilo que ele lhe havia dado.”
Rosalina tinha mais amigos no Brasil do que em Portugal. Os
processos judiciais fizeram dela uma mulher cautelosa e desconfiada. Desde a
infância, sua vida foi marcada por alguma dureza. Sempre viveu em ambientes de
gente mais velha e dedicou-se a cuidar de familiares doentes. Na juventude, ao
se casar com um industrial sexagenário, levantou suspeitas de oportunismo. Ela
explicava que foi a única maneira que encontrou para sair de casa e fugir de
uma educação severa.
Descrita como bonita e ambiciosa, organizava a vida mundana
do marido milionário. Em seu apartamento no Flamengo, exibia fotos de encontros
em que o casal aparece ao lado da primeira-ministra inglesa Margaret Thatcher,
do presidente francês Valéry Giscard d’Estaing e do presidente português
Américo Tomás. Na agenda, velha de muitos anos, Rosalina ainda mantinha os
números pessoais de Sarah Kubitschek e de Leonel Brizola.
No caso de Brizola, amigos de Feteira contam que o
empresário morreu com ódio dele. O seu sonho era criar uma nova cidade na
região de Maricá, no litoral norte-fluminense, onde era dono de imensas
extensões de terra. Pediu ao arquiteto Oscar Niemeyer e ao urbanista Lúcio
Costa, os mesmos de Brasília, que desenhassem a Cidade Olímpia, que batizaria
em homenagem à irmã mais nova, o mesmo nome que deu à filha. Um amigo do
empresário, com trânsito entre deputados, circulou a proposta de ser concedido
um “estímulo” de 40 mil dólares a cada parlamentar que apoiasse a aprovação do
novo município na Assembleia do Rio.
Não se sabe se Feteira desembolsou o “estímulo”, mas é fato
que a Assembleia aprovou rapidamente a criação do novo município. Por razões
nunca esclarecidas, no entanto, o então governador Leonel Brizola vetou o
projeto. Feteira passou só a se referir a Brizola com palavrões.
Com a sua morte, Rosalina entrou com uma ação para que fosse
reconhecida como esposa legítima. Tentava obter assim metade da herança. O
pleito foi rejeitado, porque a legislação portuguesa não reconhece a figura
jurídica do “amasiado”. A Justiça brasileira também não reconheceu a união como
estável, apesar dos testemunhos apresentados em contrário. Os próximos a
Rosalina atribuíram a derrota, no caso brasileiro, à ingerência de uma
desembargadora da família de Feteira.
A esposa legítima, Maria Adelaide, morreu dois anos depois
do marido. A sua parcela na fortuna é pleiteada hoje por mais de uma dezena de
herdeiros. Entre eles está a escritora Inês Pedrosa, diretora da Casa de
Fernando Pessoa, uma das mais conhecidas autoras portuguesas contemporâneas,
descendente de Maria Adelaide.
Como secretária e amante, Rosalina tinha acesso a várias
contas bancárias conjuntas com Feteira no Brasil, na Suíça e nos Estados
Unidos. Olímpia contratou empresas para rastrear as contas do pai pelo mundo e
acusou Rosalina de ter movimentado indevidamente mais de 25 milhões de euros.
Informações enviadas oficialmente à Justiça de Portugal pelo banco suíço UBS
mostram que, só nesta instituição, 9 milhões de euros foram transferidos para
contas de Rosalina. Delas, 5 milhões de euros foram enviados ao ex-deputado
Domingos Duarte Lima, figura-chave no desaparecimento da velha senhora no
Flamengo.
O advogado Duarte Lima era homem de confiança de Lúcio Tomé
Feteira. Como parlamentar por quase duas décadas, não podia advogar e não declarou
o dinheiro que ganhou nessa atividade até que a investigação de Olímpia viesse
à tona. Pouco antes de morrer, Feteira deu uma instrução a Rosalina: se tivesse
problemas depois que ele partisse, ela deveria procurar Duarte Lima.
A cantora de fados Maria Alcina Pinto da Costa Duarte, hoje
com 72 anos, conheceu Feteira e Rosalina em 1974, num ato beneficente no Rio.
Nascida em Portugal, está radicada na capital fluminense desde os 14 anos. Teve
programa de auditório no rádio (A Voz de Além-Mar), foi dona de um restaurante
com fados em Ipanema (A Desgarrada), participou de sete séries e novelas de
televisão na Rede Globo (Os Maias, Jogo da Vida) e virou nome de logradouro na
terra natal (avenida Maria Alcina Fadista). Orgulha-se de ter cantado com Tom
Jobim e se apresentado para presidentes e militares – foi o general Galvão de
Melo, da junta militar que assumiu o poder no início da Revolução dos Cravos,
quem patrocinou o seu retorno à terrinha, em 1976.
Maria Alcina frequentou Feteira e Rosalina por quase três
décadas, a ponto de ser convidada a visitá-los quando o empresário estava
acamado e queria ouvir fados ao pé do ouvido. Sempre pedia que entoasse
repetidas vezes Que Deus me Perdoe (Quando canto, não penso no que a vida é de
má/ Nem sequer me pertenço, nem o mal se me dá./ Chego a crer a verdade, e a
sonhar – sonho imenso –/ que tudo é felicidade e tristeza não há.)
“Ele era um homem muito alto e ela, baixinha”, disse Maria
Alcina. “Mas se tornava muito grande no sorriso e na ternura que tinha por ele.
Ela era o anjo da guarda dele. O cuidado que tinha era impressionante.”
Lembrou-se de que, seguindo os modos lusos, Rosalina chamava-o sempre de
“senhor Feteira”, e ele se referia a ela como “dona Lina”. E prosseguiu:
Ele caiu da própria altura e fraturou o fêmur. Chamava-me
para cantar, mas sabia mais letras de fados do que eu. Gostava muito de contar
a vida dele. Eu ficava encantada com histórias que pareciam saídas de um filme.
Contava como, na selva, os canibais tentaram pegar a ele e aos empregados em
Angola. Do Congo Belga, narrava caçadas com o rei Leopoldo iii, da Bélgica. A
convivência com Getúlio, JK e Lacerda. Sou muito romântica, muito sonhadora,
dividir essas histórias me fazia bem ao ego.
Quando Feteira morreu, prosseguiu a cantora, Rosalina se
isolou cada vez mais e vivia com medo: “Ela me dizia: ‘Não sei se vou aguentar.
Estão fazendo tanta maldade comigo.’ Já não me ligava da casa dela. ‘Se quiser
falar comigo, deixa recado no celular que ligo de volta’, dizia. Ligava dos
Correios. Tinha medo que o telefone estivesse grampeado. “A força do dinheiro
faz tudo.”
Com o processo movido pela filha Olímpia, Rosalina teve as
contas bloqueadas. Vivia da aposentadoria que recebia e de aluguéis de
apartamentos em uma estância no Algarve, durante as férias na Europa. “Uma
quinta maravilhosa”, disse Maria Alcina. “Rosalina era uma pessoa tão simples
que ela mesma ajudava a arrumar os apartamentos. Sempre parecendo uma
bonequinha. Em setembro, depois que os turistas iam embora, vinha para o
Brasil. Era muito só.”
A cantora deu exemplos da dedicação da amiga ao empresário:
Quando o senhor Feteira fraturou o fêmur, ele tinha um
enfermeiro. Mas, ao acabar de comer, ela tirava a placa, ou dentadura, como se
diz no Brasil, limpava e a colocava de volta. Ela própria trocava a fralda
geriátrica. Vivia com ele maritalmente. Amante é uma palavra muito linda, mas
as pessoas a deturpam.
Contou que, nos negócios, Rosalina agia como uma dama de
ferro: “Não foi à toa que se tornou próxima de Margaret Thatcher. Mas, depois
da morte do marido, levava uma vida simples. De manhã, ia à feira na Glória,
com carrinho para comprar peixes e legumes. Era criativa e econômica. Muitos
acham sovinice a pessoa não ser consumista. Mas o consumismo é um dos males da
humanidade. Ela estava muito deprimida. Achei-a muito nervosa, no final de
setembro, quando chegou ao Brasil naquela que seria a sua última viagem.”
Rosalina não se deitava sem ligar para Maria Alcina. Ao se
levantar, ligava também. “Eu sempre dizia: quando voltar de algum lugar, me
liga para dizer que está bem”, contou. “Antes de sair, liga-me novamente. Era
assim todos os dias. Foi por causa desse hábito que se conseguiu desvendar seu
sumiço.”
No domingo, dia 6 de dezembro de 2009, a fadista comemorou
cinquenta anos de carreira com uma festa no Arouca Barra Clube, na Zona Oeste
do Rio. Rosalina compareceu e combinou um almoço com a amiga naquela semana,
antes de regressar a Portugal. “Preciso conversar com você”, disse à fadista.
No dia seguinte, Maria Alcina deixou vários recados, mas a
amiga não telefonou de volta. “Ela não saía a lugar algum sem nos avisar”,
lembrou-se. “Fui ligando e nada. Ela andava a fazer umas pesquisas em
cartórios, sobre escrituras. Sempre sozinha, não se aprofundava em dizer o que
era. Amiga tem de ser discreta, eu ficava na minha. Dizia a ela apenas: ‘Larga
isso tudo. Daqui a gente não leva nada. Nunca vi enterro com caminhão de
mudança atrás.’”
Na noite em que não conseguiu falar com Rosalina, a cantora
acordou no meio da madrugada. Em sonho, viu a amiga gritando: “Me ajuda!” Foi
tão real que despertou sobressaltada. No dia seguinte, continuou sem conseguir
falar com ela. Telefonou à procuradora de Rosalina, conhecida como Rose, que
foi ao apartamento do Flamengo e viu que a cama estava feita. Ela não dormira
em casa.
Ao ver a cama intacta, Rose procurou o advogado Normando
Marques, que também foi ao prédio e ouviu dos porteiros que Rosalina saíra na
noite anterior e não regressara. Três dias depois de buscas infrutíferas em
hospitais, delegacias e institutos de medicina legal, Marques prestou queixa de
desaparecimento em uma delegacia do Catete. Maria Alcina e Rose espalharam pelo
bairro do Flamengo cartazes com foto de Rosalina e a legenda: Desaparecida.
Maria Alcina se lembrou de uma sobrinha de Feteira, casada
com um economista, que foi do Ministério da Fazenda e é próximo do governador
Sérgio Cabral. Decidiu relatar a ele o que se passava. No dia 16 de dezembro,
quando o desaparecimento completava nove dias, o caso saiu da delegacia do
Catete para a recém-criada Divisão de Homicídios. Alertado pelo economista
amigo, Cabral pediu empenho à cúpula da segurança pública do estado. Três dias
depois de a Divisão de Homicídios ser incumbida do caso, souberam de um cadáver
encontrado numa estrada de terra no município de Saquarema, na Região dos
Lagos.
A rua 96, no distrito de Sampaio Corrêa, em Saquarema, a
pouco mais de 100 quilômetros do Rio, é conhecida como local de desova de
corpos e de carros. É uma região erma, cercada por mato alto, sem luz elétrica
e parcamente povoada. Durante a noite, pouco se enxerga por ali. Durante o dia
é ponto de passagem para os moradores da região chegarem à rodovia que liga
Saquarema ao Rio.
Um corpo atingido por duas balas, uma no peito e outra na
cabeça, não seria surpresa na rotina macabra do arrabalde. Mas era o cadáver de
uma velha senhora branca, bem trajada, com brincos, óculos e relógio caros, com
aparência de gente fina, mesmo ensanguentada e enlameada. Levado para o
Instituto Médico Legal de Cabo Frio, o corpo sem documentos foi lançado na
categoria dos cadáveres não identificados. Assim permaneceria por dez dias.
Fez-se então a junção entre a senhora desaparecida no Rio e
o corpo de Saquarema. Era a mesma pessoa. “Esse tiro na cabeça é chamado, no
jargão do crime, de confere”, explicou o advogado Normando Marques. “É disparo
para assegurar que a vítima de fato foi morta”, disse. Em 22 de dezembro de
2009, Rosalina foi velada e enterrada no Cemitério São João Batista, em
Botafogo.
A quem interessava o assassinato? A resposta óbvia era: a
Olímpia, a filha de Feteira fora do casamento com quem Rosalina travava uma
pesada disputa judicial pela herança. A mais nova acusava a outra de desviar
milhões de euros de contas do pai. A assassinada dissera que Olímpia dilapidava
o patrimônio antes que o inventário fosse concluído.
Dois investigadores, lotados na equipe Saturno 64 da Divisão
de Homicídios da Polícia Civil, acompanharam o velório e o enterro. Um deles
levava uma Bíblia na mão, com uma microcâmera embutida. Todos os presentes
foram gravados, assim como trechos das conversas entre os enlutados.
Olímpia fez questão de vir ao Brasil prestar depoimento aos
policiais. Disse-lhes que não lhe interessava que Rosalina fosse morta: queria
que ela respondesse na Justiça pelos desvios da herança paterna. Mas chamou a
atenção dos investigadores que Olímpia fosse acompanhada, em seus deslocamentos
pelo Rio, por três policiais militares e um agente do Corpo de Bombeiros.
Segundo a equipe Saturno, os seguranças lhe foram indicados
pela banca de advocacia de Sergio Bermudes, uma das mais caras do Brasil. Tidos
como suspeitos e vigiados por dias, tiveram a quebra de sigilo telefônico
autorizada pela Justiça. Investigadores os seguiram e realizaram plantões em
suas casas e locais de trabalho. Não se encontrou nenhum indicativo de que
pudessem ter participado do assassinato. Mas havia outro suspeito a ser
investigado.
Domingos Duarte Lima, de 56 anos, tem os atributos de um
homem de bem. Formou-se em direito pela Universidade Católica Portuguesa, foi
parlamentar por duas décadas, é amigo do presidente de Portugal, Cavaco Silva.
Dirigiu a Associação Portuguesa contra a Leucemia e o Instituto Português de
Oncologia. Foi amigo de Lúcio Tomé Feteira por décadas.
Em 1998, durante um exame médico de rotina, descobriu que
tinha leucemia em estado avançado. Nos seis meses que ficou internado, Rosalina
e Feteira organizaram reuniões para que os amigos rezassem pela sua cura. Após
um transplante de medula, ele se recuperou e voltou à política. Foi
vice-presidente do Partido Social Democrata e parlamentar até 2009. Sua
carreira naufragou quando se envolveu num empréstimo fraudulento.
Como Rosalina repetia a amigas que Feteira lhe recomendara
que recorresse in extremis a Duarte Lima, ele foi um dos primeiros portugueses
a ser procurado quando ela desapareceu. Normando Marques teve dificuldades para
achá-lo. Numa primeira ligação, disseram-lhe que Duarte Lima estava na Tunísia.
Quando conseguiu falar com ele, em Lisboa, ouvi-o dizer que estava a caminho de
Hong Kong. Mas o advogado contou que estivera no Brasil e mantivera contato com
a portuguesa na véspera de seu sumiço.
Dois dias depois do registro de desaparecimento, Duarte Lima
enviou um fax à 9ª Delegacia Policial, no Catete. Afirmou no documento que
estivera em Belo Horizonte, na primeira semana de dezembro, quando Rosalina lhe
pediu que fosse ao Rio para discutir assuntos relativos ao espólio de Lúcio
Feteira. Acrescentou que se encontrou com ela na noite do seu desaparecimento:
apanhou-a “junto de sua casa” e conversaram por meia hora. Ao final do
compromisso, afirmou no fax, a viúva portuguesa lhe disse que tomaria um táxi
até Maricá. Lá, teria uma reunião com certa Gisele, com quem negociaria
terrenos pertencentes ao espólio de Feteira.
O advogado disse que, cordialmente, decidiu conduzir
Rosalina até Maricá, a mais de 50 quilômetros do Rio. Ele não conhecia o
caminho, mas Rosalina o orientou a seguir pela estrada principal, que começa na
saída da ponte Rio–Niterói, e de lá teria sido instruída o tempo todo por
Gisele. Chegaram à cidade pouco antes das dez da noite.
Gisele, afirmou o advogado, aguardava em frente ao Hotel
Jangada, junto a um Honda cinza. Duarte Lima descreveu-a como uma mulher loura,
de estatura mediana, que aparentava ter entre 45 e 50 anos e usava óculos de
aros escuros. Notou que as duas se tratavam com familiaridade. Voltou ao Rio
logo em seguida. Retornou a Belo Horizonte, onde estivera, e seguiu viagem para
Lisboa.
O relato impressionava pelas minúcias. Mas havia uma
afirmação que contradizia o que todos os amigos dela diziam. “Apesar de saber
que a senhora Rosalina é uma pessoa muito reservada sobre sua vida, nem sempre
dando conhecimento, mesmo aos mais próximos, dos seus atos e dos seus passos,
achei estranha essa ausência de casa”, escreveu ele no fax. Todas as amigas
dela, no entanto, insistiam que Rosalina lhes narrava cada passo, dado ou a
dar, ao contrário do que afirmava Duarte Lima.
Os investigadores realizaram buscas no apartamento da Praia
do Flamengo. Recolheram diversas agendas, anotações, extratos bancários, contas
telefônicas, documentos imobiliários e três aparelhos celulares. Não
encontraram quaisquer referências a Gisele alguma, algo estranho na rotina de
uma pessoa que anotava o que fazia e o que faria com minúcias. Na memória dos
celulares, também não havia Gisele listada. Sobre uma das camas do apartamento,
estavam as malas de Rosalina, ainda abertas, como se sua preparação para voltar
a Portugal estivesse em andamento. Os dois comprimidos em cima da mesa da sala,
próximos a uma baixela, também eram indícios de que pretendia voltar
A Justiça quebrou o sigilo telefônico do seu telefone fixo e
dos celulares. Na noite de seu desaparecimento, recebera quatro ligações – às
16h20, às 18h15, às 19h48 e às 19h51 – de um mesmo celular. O número do
aparelho era de um celular pré-pago, de origem portuguesa e proprietário não
registrado. A última ligação durou 21 segundos. Foi feita oito minutos antes
que Rosalina fosse filmada descendo o elevador. Provavelmente, deduziram os
investigadores, era o seu interlocutor, avisando que estava nas redondezas do
prédio.
Como Duarte Lima dissera à polícia ter recebido uma chamada
de Rosalina quando estava em Belo Horizonte, policiais tentaram rastrear a
ligação. Não tiveram sucesso. Mas descobriram que Duarte Lima usara o seu
celular no Rio. Fizera ligações no Flamengo, bairro onde vivia Rosalina, e em
Copacabana, onde ele se hospedou.
O número de celular de propriedade desconhecida, que ligara
para Rosalina quatro vezes, foi usado sempre em locais próximos de onde esteve
Duarte Lima. Para os investigadores, não havia dúvidas de que os dois celulares
foram usados pela mesma pessoa: Duarte Lima. Com essa suspeita, policiais
contataram-no em Portugal. Foi uma conversa de uma hora de duração, gravada,
para evitar alguma falha de entendimento em razão de diferenças linguísticas.
Ao ser perguntado se havia alugado algum carro no Brasil, o
advogado disse que sim. Mas não se lembrava nem da locadora, nem do modelo do
automóvel. Confirmou que se hospedara no Hotel Sofitel Rio, em Copacabana, e se
encontrara com Rosalina à noite. Estacionara o carro na Praia do Flamengo, foi
avistado por ela e foram a uma lanchonete numa rua da qual não lembrava o nome.
Depois de trinta minutos de conversa, ele se ofereceu para levá-la até Maricá.
Os policiais constataram que em nenhum momento ele guardou o carro na garagem
do hotel, preferindo deixá-lo em ruas próximas. No dia seguinte, voltou de carro
a Belo Horizonte e regressou a Portugal.
Os investigadores analisaram todos os radares entre a ponte
Rio–Niterói e Maricá. Viram as multas aplicadas aos carros que por ali
transitaram entre 20 e 23 horas do dia 7 de dezembro. Do calhamaço, selecionaram
as placas de carros de empresas de aluguel ou de Belo Horizonte. Entre centenas
de multas recolhidas, fixaram-se nas aplicadas num Ford Focus, prata, placa HCF
1967, de Belo Horizonte.
O carro foi multado às 21h38 no km 28 da estrada que sai do
Rio para Maricá, e que se estende até Saquarema. Às 22h37, o mesmo carro
recebeu outra multa, só que no sentido de volta ao Rio: uma hora se passara
entre a primeira e a segunda penalidade.
Os policiais refizeram várias vezes o trajeto entre o local
que o radar registrou a infração e o ponto em Saquarema onde foi encontrado o
corpo de Rosalina. Perceberam que o tempo seria suficiente para ir ao matagal e
voltar à rodovia. Na mesma noite, o carro recebeu duas outras multas, uma ainda
na cidade do Rio e outra na chegada a Maricá. No dia 6 de dezembro, véspera do
crime, o Ford Focus foi multado no km 18 (às 16h31), no km 28 (às 16h37) e no
km 58 (às 17h07). Essa última multa foi registrada na entrada para o distrito
de Sampaio Corrêa, já em Saquarema, onde foi encontrado o corpo.
Os policiais procuraram o dono do carro. Ele pertencia a uma
pequena locadora, chamada Locacar, com sede no centro de Belo Horizonte. A
empresa apresentou documentos de quem alugara o carro naqueles dias: Domingos
Duarte Lima. A locadora também informou que o ex-deputado português pagara sete
multas por excesso de velocidade e o reembolso dos tapetes dianteiros do
veículo, que não foram devolvidos. Uma das multas, aplicada num ponto a apenas
oito minutos do local do assassinato, na véspera do crime, fez com que os
policiais suspeitassem que Duarte Lima tivesse ido a Saquarema em dois dias
seguidos. Na primeira vez, para buscar um local ideal para o crime. Na segunda,
para ali matar Rosalina.
Havia mais: Duarte Lima disse que a levou até o Hotel
Jangada, mas ele foi multado 100 metros antes da entrada de Maricá. Estava a 99
quilômetros por hora, velocidade virtualmente impossível de fazer a conversão
de 90 graus para entrar no acesso à cidade. No Jangada, não encontraram nenhum
registro da portuguesa ou de uma Gisele. As câmeras internas não filmaram a
chegada delas e de Duarte Lima. Conclusão: ele não entrou em Maricá e Gisele
não existe. O advogado, isso sim, levou Rosalina a um ponto deserto em
Saquarema, 50 quilômetros distante do hotel. Lá, disparou dois tiros nela,
jogou o corpo no matagal e se livrou dos tapetes do carro, com medo de que
tivessem resíduos do crime. A arma não foi encontrada. Tampouco a bolsa e a
pasta com documentos que a viúva carregava.
Na documentação com que alugou o carro, Duarte Lima forneceu
como endereço de hospedagem o Hotel Platinum, no Centro de Belo Horizonte. Um
dos telefonemas que fez de seu quarto foi para a loja Pantanal Caça, Pesca e
Camping, representante oficial da Taurus, a empresa que fabrica armas e balas.
Na loja, no entanto, não existem registros de nenhuma venda em nome de Duarte
Lima.
O delegado Edson Henrique Damasceno, de 31 anos, trabalha há
quatro na polícia do Rio. Ele comandou a equipe Saturno 64, formada pelo
comissário Aurílio Nascimento e pelo inspetor Rogério Lima. “Por tudo o que
recolhemos, pedimos a prisão preventiva do ex-parlamentar”, disse.
“Foi uma investigação à altura da CSI”, definiu a promotora
Gabriela de Aguillar Lima, numa referência à séria de televisão mais assistida
no mundo, a Crime Scene Investigation, produzida pela CBS e exibida em canais a
cabo no Brasil.
“O crime foi cometido por motivo torpe”, escreveu a
promotora na peça em que pediu a prisão preventiva de Duarte Lima. “O
denunciado matou a vítima justamente porque ela não quis assinar declaração no
sentido de que ele não possuía qualquer valor transferido por ela, o que
demonstra sua ausência de sensibilidade e sua depravação moral.”
Na única entrevista que concedeu sobre o assassinato, à
emissora portuguesa RTB, Olímpia disse que “Rosalina deu mais trabalho morta do
que viva”. E completou: “Por mais que procure pessoas interessadas em calar a
Rosalina, não encontro outra pessoa que não seja Duarte Lima. Existe um papel
que Rosalina deveria assinar.”
Olímpia se referia à pressão que Duarte Lima exerceria sobre
Rosalina para dizer que a transferência de mais de 5 milhões de euros que ela
fez para uma conta dele seria o pagamento de honorários, e que ele nada devia a
ela. “Por que recebeu essa verba?”, indagou Olímpia. “Qual a razão? Honorários?
Ele não atuava como advogado dela.”
Duarte Lima só se manifestou uma vez na imprensa portuguesa
sobre a acusação de assassinato de Rosalina. “Há uma tentativa de eliminação do
seu advogado, da pessoa que a defendeu durante nove anos, de eliminação dessa
pessoa do ponto de vista moral, do ponto de vista do caráter e do ponto de
vista psicológico”, disse. “A investigação policial é complexa. Falamos de um
crime cometido no âmbito de uma herança com interesses poderosíssimos e em
conflito. Muitas vezes não são só interesses dos herdeiros diretos, podem ser
interesses de terceiras pessoas. E a própria polícia tem dito que a linha de
investigação que está a seguir é muito complexa. Não compete a mim fazer
investigação. A mim compete dar para a investigação as informações que eu tenha
disponíveis e que possam ser relevantes.”
o dia 17 de novembro passado, Duarte Lima foi preso em
Portugal. Não pelo assassinato de Rosalina, mas por fraudes contra um banco que
teria sido lesado em mais de 40 milhões de euros. É acusado também de
falsificação, tráfico de influência e fraude fiscal.
A Justiça brasileira pediu a prisão preventiva de Duarte
Lima também em novembro, o que gerou um alvoroço na imprensa lusa. Depois de
anos claudicando, a investigação sobre irregularidades na operação bancária
ganhou celeridade.
O inquérito do homicídio está em um impasse jurídico. Ele
pode ser condenado à revelia no Brasil pelo assassinato, mas não cumpriria pena
em Portugal. Sentenciado aqui, entraria na lista dos mais procurados da
Interpol, e não poderia deixar Portugal sem correr risco de ser preso. Assim
como o Brasil, Portugal não extradita seus cidadãos para serem julgados em
outros países. Uma saída seria a realização de negociações diplomáticas, para
que o inquérito fosse transferido para lá. A Justiça portuguesa assumiria o
inquérito criado no Brasil e seria a responsável por seu julgamento.
No romance Crime e Castigo, de 1866, Dostoiévski narra o
assassinato de uma velhinha usurária por um homem desesperado por dinheiro.
Raskólnikov, o assassino, planejara o crime perfeito. Uma das suas primeiras
reflexões é que não deve mentir ou esconder da polícia nenhuma informação banal.
Revelada, tal informação se torna prova irrefutável do crime. Mas, atormentado
pela culpa, Raskólnikov se embaralha e praticamente confessa o crime. Ao seguir
tal linha de raciocínio, Duarte Lima revelou detalhes que não devia. Não
confessou, mas a polícia investigou os detalhes e o descobriu.
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