Foto: Dipak Kumar/Reuters
Há uma tradição no jornalismo anglo-saxónico de que gosto muito: a publicação de textos das personagens principais de uma história, escritos na primeira pessoa. O trabalho do jornalista está lá, apesar de não o vermos. Foi ele que descobriu a história, que avaliou o interesse que teria para o público, definiu o espaço que merecia e que, quase sempre, escreve o texto, com base numa entrevista (ou várias) com a pessoa escolhida.
Mas, quando lemos um artigo como este no Guardian Weekly, sobre a experiência de um activista pelos direitos dos trabalhadores agrícolas indianos, não pensamos nisso. Ouvimos apenas a voz daquele homem, com quem criamos uma ligação próxima e imediata. Prestamos apenas atenção ao que nos conta: que há cada vez mais agricultores a suicidarem-se, desesperados com a seca que atinge as suas terras, por culpa das alterações climáticas. Podemos, é claro, distrair-nos por momentos, pensando que este é um bom artigo para esfregar na cara daqueles que ainda duvidam das consequências ambientais criadas pelo nosso insano estilo de vida.
E podemos, no fim, reparar na nota:
• Kishore Tiwari was speaking to journalist Rajen Nair
Ou não.
Não tem importância.
Nenhuma.
Só a história importa.
Gostava mesmo muito que, também por cá, mais jornalistas conseguissem arrumar assim os seus egos na gaveta.
6 comentários:
APOIADO! PORRA!
E agora a piada má: Pelo menos não se suicidam por afogamento...
Deixa-me aplaudir. De pé e com ambas as mãos.
Muito bem visto, muito bem escrito. E disse tudo. Num futuro mestrado em jornalismo seria texto para saber de cor.
Todos os dias, o mesmo flagelo, a mesma rotina, o mesmo desespero.
O que comer?
A terra continuava seca. Seca e estéril como as pedras, sem erva, sem alimento, sem água.
A grande planície de El Fasher, no extremo ocidental do país, sempre fora o lar ancestral dos Fur, uma das quatro etnias de um dos países mais áridos de Africa, o Sudão. Os Shatt, os Tama e os Zaghawa, mais numerosos, há muito que se haviam espalhado pelos territórios vizinhos, instalando-se até em países vizinhos, como o Chade, a Líbia e até o Egipto.
Os Fur, mais ciosos dos seus costumes e tradições, mantinham-se na grande planicie, sobrevivendo às atrocidades de Darfur, tentando sobreviver nas pequenas aldeias, de paredes de barro e tectos de ramos secos.
Sobreviver.
Há quanto tempo não caía dos céus uma gota de água? Um ano? Talvez mais.
Mordebe conhecia bem as suas tarefas diárias. Aos sete anos, podia dar-se por muito feliz por estar vivo, não padecer de nenhuma doença grave e, principalmente, não ser orfão. Eram estas as prioridades para qualquer criança Fur, sabendo já de antemão que adoecer era o prenúncio da morte, sem médicos, nem hospitais nem farmácias num raio de muitas centenas de quilómetros.
O dia de Mordebe começava bem cedo, por volta das cinco da manhã, quando os primeiros raios de sol desciam sobre a aldeia. A mãe, Nyala, agitava as brasas e despejava sobre as malgas de barro uma mistura pastosa de sabor azedo, misturando sementes moídas e folhas verdes; a água era pouca e não podia ser desperdiçada.
A temperatura subia rapidamente para os 40, 41 ou 42º - mesmo assim, sempre um pouco menos que em Albara, mais ao norte, onde atingia frequentemente os 46 e 47º - um autêntico inferno, à sombra.
Depois da parca refeição, era tempo da recolha.
Mordebe, o irmão mais velho e o filho dos vizinhos, Fashin, dirigiam-se ao extremo sul da aldeia e, a partir daí, percorriam agachados os campos secos, de malga de barro na mão, à procura de sementes – sementes deixadas cair pelos pássaros, arrastadas pelo vento, desenterradas por acaso. Tudo servia, desde que fosse comestível.
De quando em quando, pequenos arbustos eriçados de espinhos brotavam de entre as rochas. As poucas árvores que ainda sobreviviam, erguiam-se como fantasmas nus de folhas, agitando os ramos vazios ao vento, à procura de uma brisa mais fresca.
Assim passariam toda a manhã, até o sol atingir o ponto mais alto. Depois, voltariam a casa, Nyala tentaria cozinhar algo com que pudessem enganar a fome por mais umas horas e logo voltariam ao campo, para procurar novamente mais alguns grãos.
No semana anterior, Fashin perdera o irmão mais novo, de doença.
Caminhavam em silêncio, atentos às pedras e raízes, em busca das sementes que poderiam significar a diferença entre a vida e a morte, abandonados aos seus próprios pensamentos, quebrados pelo inevitável fardo de lutar... para sobreviver.
O céu, habitualmente azul escuro e sem nuvens, ostentava um cinzento pesado de chumbo.
Mordebe sentou-se um pouco, interrompendo a busca incessante de sementes. Os joelhos doíam-lhe horrivelmente e as costas, vergadas à posição habitual, teimavam em não conseguir uma postura correcta.
Olhou para cima e na sua imaginação, as nuvens brancas formaram figuras fantasmagóricas, destacando-se sobre o fundo escuro do céu. Uma delas, em particular, assemelhava-se bastante a um rosto humano, sorridente e afectuoso.
Mordebe sorriu-lhe, e a nuvem pareceu devolver-lhe o sorriso.
Ao longe, um clarão de fogo sulcou os céus.
(continua...)
(...continuação)
Mordebe fechou os olhos. Algo lhe caíra sobre a testa.
Abriu a boca.
Primeiro uma gota, depois outra... e ainda mais outra, gotas grossas de água refrescante, e em breve o céu se despejou sobre a terra árida, vertendo com violência toda a água armazenada durante a seca de tantos e tantos meses.
Mordebe permaneceu sentado, de boca aberta, sorvendo com sofreguidão os pingos grossos que lhe escorriam pela cara. Colocou as mãos em concha sobre a boca e ali ficou, a beber água, como se de repente o paraíso tivesse descido à terra sob a forma de pequenas gotas cristalinas.
O rosto humano, sorridente e afectuoso, que Mordebe vira nas nuvens, já se dissolvera noutras formas. Mas a chuva continuava a cair, sob a forma de um quase milagre, sobre a planície ressequida de El Fasher.
Mordebe permaneceu sentado, de boca aberta às gotas da chuva, durante muito tempo.
O futuro era incerto.
Não sabia quando voltaria a chover.
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